A insuportável liberdade do amor




"Euclides da Cunha foi um de nossos maiores intelectuais, por sua coragem de pensar.
Quando soube da revolta de Canudos, atribuiu-a aos monarquistas.
No sertão da Bahia, percebeu que estava errado.
Sua coragem de rever o erro valoriza sua obra-prima, Os Sertões.
Mas não teve essa grandeza em sua vida pessoal.
Casou-se com a filha de um líder republicano.
O casamento, porém, não foi feliz.
Ele não deu à jovem Ana o amor que ela queria.
Ela se envolveu com o tenente Dilermando de Assis.
Sabe-se o final da história.
Em agosto de 1909, Ana deixa o marido pela última vez.
Euclides invade a casa de Dilermando, gritando quem vem matar ou morrer.
É morto. Dilermando é absolvido.

Porque evocar essa história - que mostra como um grande intelectual foi tão infeliz em sua vida amorosa - quando o assunto da semana é o pai que se matou com o filho pequeno, ao não suportar o fim do casamento?
Porque não é a classe social, a formação intelectual ou a abertura de espírito para a ciência que capacitam alguém a lidar com o que é dificil no amor, em especial a rejeição.
A tragédia recente é de um pai que não aguenta viver sem a mulher.
É imperdoável ele ter matado o filho, ato cruel e odioso.
Mas seu suicídio, com o filicídio, decorrem da dificuldade de aceitar a liberdade no amor, no caso, o direito da mulher a seguir seu rumo.

A liberdade no amor não é fácil.
Quando concebi um programa a respeito para a TV Futura, alguém me sugeriu tratar de casamentos abertos. Recusei.
Nada tenho contra quem é feliz numa relação permanente com eventuais casos paralelos.
Mas liberdade no amor é estar livre no (e não do) casamento.
É uma realização com o outro.

Comecemos pela falta de liberdade no amor, que existe quando não se consegue tratar do que é mais íntimo.
Se tenho uma companheira, espera-se que seja a pessoa mais próxima de mim no mundo, e que tenhamos uma aliança, uma cumplicidade.
Se não, é porque algo vai mal.
Se não conseguirmos conversar a respeito, piora.
Conversar é uma arte conquistada.
Há outras duas formas de conversa.
Uma se desenvolveu na Europa do século 17.
É a conversa em sociedade, até mesmo superficial, mas que é condição para o encontro com estranhos ser agradável e a vida social, um prazer.
Mas há outra conversa, que é a íntima.
Ela inclui assuntos penosos.
Um casal pode passar por problemas sexuais, como a redução ou perda do desejo pelo outro.
Abordar esse tema é árduo, mas geralmente é melhor fazê-lo antes que um dos companheiros procure uma terceira pessoa.

O que agrava as coisas é que, hoje, toma-se por sinceridade o que é só agressividade.
Alguns acham que dizer o que vem à cabeça é o mesmo que abrir o coração. Não é.
Com frequência, a primeira resposta a algo difícil é a reação agressiva de quem deseja livrar-se de uma situação incômoda.
Ofender o outro não é ser sincero. É, apenas, ofender.

Que maturidade é preciso para viver a liberdade no amor?
Gilberto Gil, ironizando o slogan da ditadura "Brasil, ame-o  ou deixe-o", recomendava: "O seu amor/Ame-o e deixe-o/Livre para amar./O seu amor/Ame-o e deixe-o/Ir aonde quiser".
Significa aceitar que uma relação de amor é uma relação de certo risco.
Não sabemos se e quando pode terminar.
Por isso, é preciso inverstir nela, e o investimento é afetivo.
Por isso Euclides, inteligente e corajoso, não foi o marido adequado para uma mulher que queria um homem alegre, o que ele não era.
O espantoso não é que Euclides, quando não havia divórcio no Brasil e o preconceito era fortíssimo, escolhesse ser assassinado com tanta vida pela frente.
O espantoso é que tragédias dessas continuam acontecendo, quando a separação se tornou quase banal, afetando boa parte dos casamentos no mundo.

Talvez haja aqui algo bem difícil.
Uma das maiores realizações que se espera da vida é o encontro de um amor de verdade, intenso, pleno.
O problema é que não temos segurança dele.
Quanto mais me apaixono, maior o risco de me iludir.
A paixão - do grego pathos, que designa a situação em que sou passivo (em oposição à ação) e minha razão fica inibida - não é boa juíza de caráter ou de relações, como tem frisado Flavio Gikovate.
O encontro emocional intenso pode dar errado.
Sua base pode ser frágil.
Por isso, parece necessário cada pessoa construir o sentido de sua vida (seu eixo) sozinha, e balizar a relação com o outro por essa prévia definição pessoal.
O amor apaixonado não substitui minha obrigação de saber quem sou, o que eu desejo, o que vou fazer.


Mas, como a paixão não é amor, isso não reduz o sentimento mais profundo pelo outro.
Apenas coloca na ordem do dia uma questão que afronta o consumismo afetivo de nosso tempo: a necessidade de converter o entusiasmo passional, que leva ao erro, em amor.
A mídia fala muito de paixão, pouco em amor.
O amor sempre aparece como algo menor que a paixão.
O coração não dispara.
Parece coisa de velho.
Não assistimos a histórias de amor, só de paixão.
Talvez esteja na hora de começarmos a contar histórias de amor, não só de enganos.
Aprendemos a viver escutando narrativas.
É hora de pensar que "foram felizes para sempre" só é possível com o amor, não só com o fulgor passional."

Reportagem do Jornal O Estado de São Paulo
Renato Janine Ribeiro

1 comentários:

David disse...

Excelente texto Mah.
Preciso ler mais jornal, rs